ROSA NUNES |
SUBSTÂNCIA DO TEMPO
A presente exposição reúne duas séries fotográficas — Palimpsestos e Uma Questão de Fé —, muito distintas no respeitante ao conceito estético, mas que correspondem à mesma pergunta sobre a substância do tempo. Em ambas, é evidente a ligação da autora ao domínio da Arqueologia.
PALIMPSESTOS Neste projecto, a artista busca no pergaminho raspado vestígios de escritas de outros tempos como forma de perceber as armadilhas de Chronos ou como tentativa de o aprisionar. Aparentemente, este trabalho pode parecer um exercício de estilo, o acaso de conjugações felizes de atmosferas harmónicas. Nada mais falacioso! Cada palimpsesto discute com o observador a localização do momento em que o tempo se anula, aquele em que pela primeira vez o olhar varre a imagem, ou melhor, a constrói. Esse momento talvez não exista ou não possa ser descortinado, cirurgicamente isolado do Passado. Está sempre em fuga e arrasta consigo memórias e fragmentos vindos de outros tempos. A ideia de palimpsesto ou o reconhecimento da impossibilidade de fragmentar o fluxo do tempo histórico – e no entanto não há outra forma de o analisar – constitui um tema central da epistemologia e da metodologia arqueológicas; cada imagem como um solo de habitat (o que nos leva a velhas discussões com François Bordes e Henry de Lumley) desejavelmente fechado no tempo do seu pisoteamento, da sua modelação por uma fogueira acesa que logo se apagou e espalhou cinzas em redor que cobriram os restos da última refeição. Estamos a falar da obsessão por contextos fechados, pelo controlo do momento zero em que o gesto acontece. A fotógrafa não dá respostas, mas escolhe toda uma semiologia arqueológica que conduz o olhar para layers subjacentes à epiderme das coisas, ou para inversões ou ressurgências inesperadas, iludindo a estratigrafia dos acontecimentos, como se o tempo pudesse andar para trás. E não pode? A opção por cores discretas, quase sempre da gama dos cinzentos cria atmosferas de incerteza, onde, por vezes, inesperadamente, emergem centelhas de belas cores.
UMA QUESTÃO DE FÉ O presente projecto de intervenção artística corresponde a uma ideia que há muito Rosa Nunes vinha amadurecendo, de representação sincrética, no sentido de comunicação emocional de uma das mais espantosas experiências arqueológicas em que ela mesma participou – a escavação do depósito votivo, da Idade do Ferro, de Garvão (Ourique). Levantar o véu que cobria o depósito de oferendas à divindade, localizado na encruzilhada de diversas culturas, conferiu-lhe o poder de atravessar uma espessura temporal de mais de 2200 anos, e como observadora externa, podia apreender a fragilidade do ser humano na doença e a capacidade mobilizadora da fé na projecção de futuro. Na sociedade actual, sujeita às crises cíclicas de um capitalismo tardio, é notório o desfasamento entre a elevada capacidade tecnológica instalada e a organização sociopolítica. A descontinuidade fracturante entre ricos e pobres nos países desenvolvidos e entre estes e as regiões subdesenvolvidas do planeta será provavelmente o motor de profundas transformações, que podemos imaginar animados por uma visão negativa de hecatombe ou por uma postura positiva de revolução social.
Joaquina Soares
ROSA NUNES Torrão (Portugal), 1955. Integrou a equipa fundadora do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), em 1974, onde permanece como arqueóloga, dedicando-se a estudos sobre a Época Romana. Possui licenciatura em Sociologia e pós-graduação em Museologia. Fez o curso de Fotografia Profissional e o curso de Projecto Fotográfico na APAF (Associação Portuguesa de Arte Fotográfica) e ainda formações pontuais no AR.CO (Centro de Arte e Comunicação Visual). É sócia da Sociedade Nacional de Belas Artes. Exposições individuais: Exposições colectivas: Colecções:
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